O texto de hoje é a minha maior confissão.
É porventura o meu maior risco, mas em simultâneo a minha maior liberdade.
É aquilo que de mim faz parte mas em nada me define. É uma ocorrência que mantive em silêncio – pelo menos da maioria – mas que agora, porque passados cinco anos, sinto poder tornar público.

Público não, parte de algo que não seja um silêncio sem resposta ou algo que me torne constrangedor ou constrangido.

Não o faço como crédito pessoal, antes como alguém que acredita numa Sociedade plural onde o Direito do indivíduo não se reveja em egoísmo.
Porque em tudo, afinal, estamos confinados a conviver até ao final de ambos.

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(texto escrito a 6 de Dezembro de 2014)

Descobrir que se está doente nunca é fácil.

Quero dizer, se for uma simples gripe, ou algo que se toma um comprimido e passa, sem que volte ou haja uma solução a tempo inteiro, nem pensamos muito nisso, mas quando aquilo com que estamos doentes é algo que nos vai acompanhar para sempre, até ao fim das nossas vidas, a história é outra.

Não posso afirmar que tenha sido sempre a pessoa com a maior consciência daquilo que me rodeia. Nem isso nem uma displicência completa do mundo envolvente, mas a verdade é que sempre tive uma vida relaxada e nunca olhei com muita preocupação muitos dos problemas reais que me cercavam.

Acho que devo começar a minha história pessoal por contar que me afirmei como homossexual à família quando tinha 27 anos. Achei que o tinha de fazer não porque fosse necessário uma vez que nunca achei necessário ‘sair do armário’ (odeio a expressão) porque sempre vivi num armário de cristal e como sempre me disse a minha Mãe nos seus ‘lugares comuns’: ‘Não é defeito, é feitio!’, mas porque tinha chegado a uma idade em que queria ter uma estabilidade emocional na minha vida em que essa questão, vinda de outros, não fosse uma interrogação para mim próprio.
Nesse sentido acho que comecei a viver uma vida sexual mais activa nesse momento. Acho que me libertei de uma idiota clausura imposta por um preconceito pessoal, quem sabe, induzido pela própria Sociedade.
A verdade é que andei com quem não devia andar e fiz o que não devia fazer.

Claro que tive uma Formação de base que me ensinou tudo sobre sexo seguro e doenças sexualmente transmissíveis, mas sou Humano, mortal, e erro.
Errei e de que maneira. Gostava de dizer que fui ignorante, mas não posso. Fui estúpido. Estúpido porque sabia dos meus riscos, mas preferi ignorá-los.
Preferi seguir a confiança cega de ir com alguém que me disse estar negativo e eu também.
Eu de mim sabia ser verdade, mas do outro não. Ainda assim decidi enganar-me a mim mesmo e cedi. Cedi ao erro e por tal hoje estou aqui, em estilo de confissão, a expiar o meu momento.

Descobrir que se está doente nunca é fácil.

Nunca me vou esquecer do dia em que o meu médico analista, amigo da família desde sempre, me liga a dizer que ‘temos’ de repetir umas análises de sangue.
Estávamos no dia 9 de Outubro de 2011 (9, 10, 11), um domingo, dia errado para um médico, mesmo um amigo, ligar a pedir novas análises. Eu percebi logo do que se tratava. E o peso na consciência começava em silêncio.
Na segunda feira seguinte, antes de ir repetir as análises, contei ao meu irmão mais velho. Ele compreendeu e pediu segredo para o resto da família.

A repetição das análises trouxe a confirmação inegável e o meu martírio pessoal começava. O segredo não podia ficar comigo, e logo fui ter com o meu médico pessoal ao Hospital de Santa Maria. Junto com ele liguei para os meus pais. Expliquei-lhes, numa voz trémula, receosa da recepção, quase num choro copioso e culpado, tenho HIV+. Estou seropositivo.

Felizmente, da mesma forma que não sou ignorante (como gostava de o ter sido) a minha família também não o é, e mesmo com a evidente zanga pelo ocorrido, soube compreender, até melhor que eu, a magnitude daquilo que me estava a acontecer.
Os tempos que se seguiram não foram fáceis. Entre a minha negação, aceitação e compreensão de tudo, tive que me julgar e ser julgado pelos que me amavam. E mesmo não me deixando de amar, o seu papel, fizeram o seu óbvio julgamento da responsabilidade que me assistia ter e não tive.

Passei a ir ao Hospital ser seguido para saber da minha saúde. Aprendi o que eram CD4, cargas virais. Como ataca o HIV o sistema imunitário e como podemos nos defender para não degenerarmos o organismo ao ponto de ficarmos com SIDA.
Juntei informação certa, errada, li o que não devia. Vi muitos vídeos alarmistas da net, ideias e teorias da conspiração. Ideias de que a doença vem do macaco, de que foram os Americanos que a criaram como arma bélica.
Histórias do eterno paciente zero, da cura milagrosa, das alterações da alimentação tudo até que enfiei na minha cabeça que se ficasse magro de mais seria um sinal de doença.
De uns 80Kg deixei-me engordar até aos 105 num piscar de olhos.

Seguiram-se as medicações para as depressões. Entre estar feliz e combativo em relação à vida, até achar que o suicídio seria a alternativa viável para o momento horribilis que vivia.
Tudo um pouco passou por esta cabeça oca.

Como já afirmei antes, não sou ignorante, e mesmo querendo-o ser, por vezes, não o consigo e acabo sempre por pensar e raciocinar as minhas hipóteses e ponderar soluções, viáveis na maioria. Mesmo vivendo com este eterno peso na consciência, e culpabilizando-me pelo ocorrido (mesmo já tendo feito um Mea Culpa) a vida não pode ser vivida refém de uma ideia perpétua que me condiciona. Nos dias que passam, vivo e convivo com a minha condição de forma pacifica na consciência daquilo que tenho, e de como me protejo, protejo os outros, e salvaguardo o meu ser.
Claro que não deixo de estar infectado, mas a infecção não me domina, sou eu quem a controla e como tal o meu estado de saúde recomenda-se.

Descobrir que se está doente nunca é fácil.

Pois não, não é, mas com tempo, perseverança e tino, tudo encontra o seu lugar certo, e mesmo a pior das doenças, até quando mortal, acaba por conviver (bem) connosco até ao final de ambos.

8 Comments

  1. És, foste e serás sempre uma pessoa muito especial. A vida prega-nos rasteiras só para percebermos o quanto forte somos. Apanha todas as pedras do teu caminho e faz o teu castelo, estarei sempre lá para te aplaudir de pé e dar-te um grande abraço.

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  2. Pingback: 11,452 – a farpa

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