Em Abril, quando as águas eram mil, citei Don Lockwood, esse personagem da sétima arte interpretador por Gene Kelly no eterno Singing in the Rain.
Mencionei a sua “dignidade, sempre dignidade“. Hoje revelo o atrás das cenas.
Estávamos em 1952 e o mundo era mais musicado e musical.
Ou a não sê-lo tentava-se construir arcos perfeitos onde até uma boa intempérie fosse cenário para uma cantilena de declaração de amor eterno.
A imortal cena passa-se numa qualquer rua urbana de bem em Hollywood. É idealizada. Há casas de persianas corridas, muros com pequenos nichos e jardins. Um candeeiro de pé alto com um globo branco.
As montras apresentam cenas vibrantes de um verão em oposição à triste e invernal chuva que se faz abater sobre o protagonista. Mas que mal tem? Os primeiro acordes fazem-se ouvir.
Doo-dloo-doo-doo-doo-doo
Doo-dloo-doo-doo-doo-doo…
Chapéu de chuva para quê? A vida é para ser vivida. Nada nos assusta, somos perpétuos, eternos e imortais. Rodopiamos, saltamos e pulamos.
É vida.
O que se segue é, porventura, a mais conhecida coreografia de um musical. Kelly dança ao som da chuva, faz ritmo nas calçadas, chapinha nas poças de água, canta e exercita-se no seu ballet próprio. Canta e dança baixo a chuva.
Termina quando chega um polícia. Olha-o fixamente, franze os ombros, parte constrangido…
É ficção. É Hollywood.
Foi tudo gravado num cenário, em plena luz do dia, ao cair da tarde, debaixo de lonas negras, com um sistema de sprinklers, onde tudo foi desenhado tendo em mente a coreografia de um Gene Kelly com 39º de febre.
O único que falhou à intenção do take único foi a questão óbvia de Hollywood se encontrar na Califórnia e ser Verão.
Além do calor ser abrasador dentro do estúdio improvisado, a pressão da água, que em jus de ser partilhada em comunidade se encontrar em falta, faziam com que a ilusão da chuva torrencial mais parecer uma garoa.
Assim, o fato de lã de Kelly, empapado em água, encolhia, ele de febre e a água mirrada, fizeram com que a cena levasse alguns dias a gravar até se tornar nos 4 minutos e 36 segundos que tem.
Ou seja, por vezes, tal como quando se quer mostrar a maior dignidade, aquilo que ocorre atrás das cenas não é o que se acaba por mostrar. Por razão de lógica praticável preferimos o produto final, aquele em que o luzes, câmara, acção vem já com um ‘cut, print’ de edição feita para consumo final, mesmo sabendo que a verdade muitas vezes é a baixa pressão de água, os fatos mirrados e a febre alta para gravar aquela cena icónica.
Um pouco como tudo aquilo pelo qual atravessamos agora.
Servem-nos uma serenata à chuva, quando na verdade andam serenando-nos nesta intempérie indefinida.
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