M’aspanto às vezes, outras m’envergonho (muito bom para o inicio de uma crónica at large sobre Portugal. Claro que não é meu. É Francisco Sá Miranda no seu melhor para ai em 1500. Verso de um poema que me chega através de Pacheco Pereira. Não o cronista. O zelota.) e espanto-me (e envergonho-me) por ver zelotas e governo unidos agora no seu soturno jogo de-atira-e-riposta-culpa-e-insulta para ver quem é que consegue sair limpo da responsabilidade de uma centena de mortos queimados em terrível agonia em incêndios de pasta de papel. Zelotas que não estiveram no governo insistem que a floresta devia ter sido ordenada, que devia haver limpeza de matos e que devia haver uma estratégia porque todos os anos há disto.
Verdade. O governo diz praticamente o mesmo alterando tempos de verbos para futurizar políticas e enérgicas acções estilo agora-é-que-sim-vamos-a-isto. Costa nisso é um artista. E o PS é um circo. E os zelotas que, com o que dizem e escrevem, nos fazem, diária ou semanalmente, bocejar de tédio ou ranger os dentes de irritação, todos eles, de Oliveira a Tavares (não vale a pena especificar com nomes próprios porque são todos iguais) dizem o mesmo (puxa, com tanta frase intercalar já parece escrito por um zelota).
Mas continuando at large neste meu irresistível ímpeto zelo-fiscalo-moralizador qual Tavares ou Oliveira (a ordem dos factores é desprezivelmente arbitrária): – Nesta palavrosa onda ninguém tem falado dos extraordinários helicópteros Kamov para combater incêndios que Costa comprou com dinheiro público aos Russos quando era Ministro de Sócrates e que aos poucos deixaram de voar.
Custaram quatro milhões e meio cada um. Foram fabricados só 63. Ao todo. Portugal de uma assentada comprou à Vertolyoyty Rossii seis destas maravilhas que voam de vez em quando, e só raramente, quando são precisos.
Os outros 57 Kamov que existem na crusta terrestre (raramente são vistos na atmosfera) estão aterrados algures entre a Índia, as planícies Tajik, na Ossétia do Sul e terceiros mundos onde domina a poeira e a ditadura, e onde (sempre que voam) servem para transportar mercenários com unhas sujas de sangue.
Portugal tem seis carcaças destas geringonças pagas por gente que agora morreu queimada porque não havia helicópteros que lhes deitasse água por cima. António Costa foi o comprador das máquinas voadoras.
Claro que pergunta at large se impõe ao cronista: – Mas porque é que Portugal, um pais fundador da NATO com relações com fabricantes de helicópteros como a Lockeed Martin, a Sikorsky, a Bell a Aérospaciale (que faz os Alouette) e com necessidade desesperada de aviões Canadair da Bombardier vai, de repente, escolher um fornecedor de helicópteros russo sem contrato de manutenção adequado. Nem Cuba faz isso, Camarada Costa.
Nós contribuintes fomos os pagadores desta estranha e inquestionada expedição aquisitiva de um membro do governo de Sócrates. Como prémio por boas compras e pelo resultado da gestão territorial que fez, incluindo um sistema de comunicações que, como os Kamov, falha sempre que é preciso, António Costa é hoje Primeiro-Ministro de um estranho Gabinete que anda a amaldiçoar a vida pública portuguesa desde José Sócrates, só porque sabem trautear umas linhas da L’Internationale e julgam que ainda estão na Comuna de Paris.
Tudo gente de esquerda. Gente que serviu Sócrates durante o Freeport, e Guterres durante a Casa Pia e que comprou Kamov à meia-dúzia.
Mas vamos recuar at large ao memorialismo que fui acumulando no registo da nossa estranha forma de vida pública em que trabalhei (at large) uns quarenta anos.
A 27 de Maio de 2014 foi inaugurado na Ribeira das Naus um discreto monumento a Maria José Nogueira Pinto. Assistiram à inauguração umas dezenas de amigos da Zézinha e alguns jornalistas.
António Costa era Presidente da Câmara de Lisboa. Fez um lindíssimo discurso exaltando a figura de Maria José e o seu influente papel na vida portuguesa. Jaime Nogueira Pinto fechou a cerimónia com palavras de saudade que comoveram todos e nos deixaram naquele silêncio sem jeito das recordações que doem mesmo.
Foi neste período de soturno mutismo colectivo que António Costa, Presidente da Câmara de Lisboa, dobrou as duas folhas A4 do seu elogio triste, meteu-as no bolso do largo casaco de alpaca cinzenta clara, compôs a gravata, apertou a mão a três ou quatro dos presentes, afastou-se uns dez metros do monumento, acenou a três câmaras de televisão que se dirigiram a ele e começaram a filmar, enquanto venerandos e obrigados repórteres estagiários com o habitual frémito mediático estendiam microfones ansiosos.
Teriam passado uns cinco minutos, se tanto, desde que António Costa, Presidente da Câmara de Lisboa, destacado socialista, tinha carpido o mais esgaçado e lacrimejante elogio fúnebre a uma pessoa excepcional quando, já de gravata composta e com o seu característico sorriso franco e luminoso, de costas para o monumento a Maria José Nogueira Pinto, anunciou que se ia candidatar à liderança do Partido Socialista e declinou uma litania violenta contra o Secretariado de António José Seguro.
Já constava que Costa nas sombras, que tão bem conhece, conspirava contra a direção do seu grupo político. Só não se sabia quando tomaria uma atitude pública.
Escolheu 27 de Maio de 2014, na altura em que presidiu à inauguração do monumento a Maria José Nogueira Pinto, para o fazer.
Depois de o ouvir e ver nesta sua exibição da natureza do ser que ele realmente é, vieram-me à cabeça as palavras de Miguel Torga num comentário que fez sobre um outro distinto socialista que em tempo esgravatou a liderança do PS e que acabaria por atingir gloria in excelsis nas alturas das vidas públicas urbi et orbi: – “O rapaz fala bem, mas não presta”.
Mario Crespo
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