Nem só do eu político existo.
Revisto-me de uma escrita própria, um eu singular, primeira pessoa, feminina, que aqui revisito num texto de 2008.
Se antes havia encarnado Garland, histriónica e própria de uma fantasia, aqui passo-me por uma acepção de personagem de Paula Rego, imagem que uso para ilustrar o texto.
Mais Marinheiros que Marés
Raios partam que o dia até tinha começado bem. Para quem não me conhece fique desde já a saber que sou trabalhadora, e isto de ser funcionário público e limpar uma estação de metro durante a noite não tem mal nenhum. Verdade seja dita somos poucos os que podem apelidar a sua arma de batalha de mopa, verdade?
Pois a mim tira-me do sério. Não sou mulher de grandes aspirações, mas também não quero passar o resto da vida na cepa torta. Sonho mais além daquilo que posso ser. Está bem, ainda assim sou realista e sei bem o que quero. Não, nada de coisas corriqueiras e vulgares. Quero um homem de verdade, daqueles que a Alaska fala na sua música. Um que não se deixe cair em dúvida e seja o capitão da sua vida. Um dia destes agarro em mim e parto nessa viagem rumo ao alto mar e troco a estação pelo porão. Mas bem, o dia até tinha começado bem e os planos de partida pareciam estar mais que certos. Ao longe, no porto, soava aquele ‘puu’ dos barcos e eu sabia que havia um lugar pra mim a bordo. Só me faltava sair, correr a cidade e dar de caras com o primeiro marujo pronto a me raptar. Só falta mesmo isso, e não o enredo de enganos que me fazem contar esta história. Mas vamos por partes.
O senhorio era um chato controlador, e diga-se de passagem, morar num quarto andar sem elevador a este preço em Lisboa era mais que sorte. Nem mesmo com a crise se conseguia um preço tão bom, mas a má vontade dele começava a surgir. Nunca lhe dei saída e seguramente não seria só chá e simpatia que queria de mim. Não pensem que sou vulgar e que me deixo levar pelas falinhas mansas de qualquer um. Fui educada por uma mãe respeitadora e uma mão pesada. Sonhos à la Leslie Carón em Gigi são coisas de película. A vida real engana-nos de forma mais directa: a chave da porta partiu-se no trinco e o telefone foi cortado por falta de pagamento. Aguardo e espero. Neste momento sinto-me desesperada e precisava que as vizinhas se concentrassem em algo mais que a má programação televisiva matinal. A sério, podia tecer considerações infindáveis sobre esses programas onde todas as Cinderellas têm um ar angelical e os ingénuos fazem-se de galã das oito. O prime time está num marasmo e a mim só me sobra ir até à varanda e tentar gritar pela minha sorte.
Tanta conversa já me está a desidratar a mente e sem luz a água que tenho no frigorífico por esta hora está quente e sobre a cerveja não teço mais comentário que dizer estar choca. Este não é, sem dúvida, o meu dia de sorte. Ao som refugiado das vizinhas que atormentam as virtudes alheias abri a janela que reflectia na vidraça o som das árvores e pensei gritar: ‘quero fugir’. Tentei, mas ainda não foi desta.
‘Mariazinha, oh Mariazinha..!’ gritava lá do alto para a rua onde a empertigada da filha da vizinha se fazia de engraçadinha. Bem sei dos seus segredos e escapadas nocturnas sobre o olhar rasante da mãe e de como encobri as rebeldias da miúda, mas cabra, ela via-me e fingia não querer saber. Para quem me vê ao longe jura que a louca sou eu. Com o calor que se abate pela capital lusa, em roupa interior a abanar um toalhão de praia promocional da coca-cola na varanda asseguro que sou o deleite para qualquer mirone, mas parece que todos estão mais a torcer para que me atire janela fora ou dê o espectáculo completo. Azar de todos. Nem me atiro nem mostro mais do que escondo. Pervertidos todos.
A manhã aquecia e parecia tornar-se eterna. É que nem telefone fixo tenho e o cheiro da maresia só me fazia querer fugir. A cidade oscilava nesse marasmo corriqueiro do dia a dia e eu tinha aspirações maiores. Já me tinha prometido fugir e desta era de vez. O espelho de corpo inteiro colocado no fundo do corredor aumentava a perspectiva mas também me enganava ao crer que na vida tudo seria maior. Afinal o espectáculo para os mirones era melhor do que imaginei. Estou gorda e com estrias. A sério, achei que as madrinhas não tinham estrias, só as grávidas. Enganei-me e quero deixar de ser madrinha. Sentia-me um relógio em função pícnica.
Se a maré sobe, a minha paciência vaza e começo a sentir esse pico de ansiedade. Caramba, nem a porra de um ansiolítico tenho. Nem sequer uma valeriana ou um chazinho de boa noite Cinderella. Lá está de novo, não sou é a Cinderella de ninguém e a imagem corrupta do Presidente da Câmara surge de forma pouco lisonjeira estilo Marlon Brando como pai do Super-Homem. Neste momento só imagino o deleite dos cobradores de impostos, dos fiscais nesse esgar barrento por me terem alienado da realidade prática do mundo moderno. É Lisboa burocrática no seu melhor.
Centra-te e acalma, pensei para mim enquanto contava até dez e batia ritmada entre as sobrancelhas com a ponta do dedo. A imensidão terrena do meu apartamento começava a latejar e eu a sentir que a saída seria mesmo virar a louca e gritar até que uma das surdas, nos andares de baixo, chame a polícia por distúrbio doméstico. O som do barco intensificava-se, mas pra mim parecia o silvar do metro a abrir as suas portas. Sim, pode que não consiga fugir da minha própria casa, mas também não consigo chegar ao trabalho e as baixas médicas já as usei para ir de férias ao sul de Espanha. ‘Coño!’, era o que mais pensava em gritar agora.
O calor que apertava já me incomodava, mas como já contei, não seria isso que me iria tirar a roupa interior e pôr-me em pelota a correr de uma ponta a outra do corredor. Por um breve instante de demência imaginei que iria desmontar o suporte da bicicleta e juntar a correia e os pedais ao ventilador para pedalar e refrescar-me. Juro, estes momentos de agonia tiram-me do sério e o que mais queria era calar o latido atordoado do relógio. Vá lá, fez-se luz (na minha cabeça que a de casa continua por pagar) e fui buscar um leque daqueles que se ganha nos concursos de praia na Costa. Entre uma abanada e outra a comoção apossou-se da rua e o som dos bares lá em baixo indiciava o pôr do sol ao fundo da rua.
Sejamos sinceros, a esperança por agora era mais que vã. Estava acabada e eu sentia-me morta e matada, esquecida e ostracizada. Sentada na varanda sentia-me como uma dessas matronas que se vestem de negro lembrando um marido perdido no mar. Lisboa de novo trazia esse fôlego na alma que se renova com o apito distante do navio que se anuncia. Lá em baixo na rua vejo uma maré de boina branca e decotes listrados. Pode que os grumetes brilhem mais, mas é com aquele que trás uma cruzeta dourada no ombro que quero estar…
E assim, embalada pelo ruído da cidade deixo-me adormecer com o abanico nas mãos.
É que amanhã é de novo dia, e na vida, sempre há mais marinheiros que marés.