Num famoso ensaio sobre literatura, o Filósofo Hungaro George Lukacs traçou uma distinção entre narrar e descrever, que me parece muito actual para compreender o que se passa no nosso Pais.

A descrição da realidade até aos mais ínfimos pormenores é-nos feita exaustivamente através dos meios de comunicação social, de um modo tão exaustivo e tão persistente nos sucessivos temas que a agenda mediática escolhe, que a intoxicação informativa daí resultante, retira a profundidade de análise que só a serenidade e o tempo para meditar lhe poderiam conferir.

E é essa superficialidade repetitiva que caracteriza o método descritivo de análise da realidade.

Por outro lado, a narração não deixa de descrever obrigatoriamente os factos que compõem a vida corrente, mas consegue dar-lhe a profundidade que a mera descrição não alcança. Por isso, vou procurar ter uma visão narrativa do Estado do País. Para tanto há que ter noção de que em 30 anos perdeu-se o Império e a estrutura mental que alimentava a sua razão de ser. Passámos de um regime autoritário para um regime de partidos, sem contudo termos adquirido ainda a maturidade política que determina, não só a alternância no exercício do poder pelas forças que recolhem apoio majoritário nos sufrágios periodicamente realizados, mas também o respeito real pelos direitos dos vencidos nas pugnas eleitorais. Dizendo de outro modo, incorporámos o principio da alternância num regime semi autoritário consagrado pelo voto.

Assistimos, como era inevitável, face à impossibilidade de evolução interna do regime anterior, a um salto para projectos libertários a caminho de autoritarismos iluminados de sinal oposto ao regime cessante.

Já não é presente, mas ainda não é História, o tempo decorrido desde esses eventos. O tempo, “rei do mundo”, ainda não fixou os traços rígidos que conferem à História o seu caracter de estátua.

Mas já passou tempo, e mais de metade dos portugueses actualmente vivos já são filhos dessa nova era e são eles os actores principais das horas que vivemos hoje.

De Império passámos a Estado unicamente europeu; de regime autoritário, vestimos a roupa da democracia representativa conservando, contudo, os vícios tão bem consagrados numa palavra da nossa língua que exportamos para o mundo e que consagra uma maneira de estar na vida: o mandarinato.

Mandar sempre foi, na nossa terra, a compensação pela ausência de liberdade e qualquer que seja a roupagem de que se revista o poder — ditadura ou democracia — o mando continua no centro das relações políticas e sociais.

Sendo o Direito a base estruturante do Estado, nada melhor do que proceder a — uma análise sucinta da sua estrutura no Portugal de hoje, para verificarmos que, sob a aparência da Democracia formal, esconde-se a visão dos mandarins.

Temos uma Constituição que procura regular não só a organização, competências e relações entre Orgãos de Soberania, como também estabelecer um programa para o País. De certa maneira, os constituintes de ‘76 conferiram-nos a liberdade, mas colocaram em “piloto automático” a sua execução. Ou seja: privilegiaram estatuir de modo rígido normas carregadas de boas intenções, mas subtraíram às gerações que têm vindo a suceder-se, a capacidade de viver de forma diferente do que consta nas nossas “tábuas da lei”.

Rigidificámos demasiados instrumentos, obrigando a que a sua evolução só se possa fazer por consensos de tal modo majoritários, que não permitem em momentos como os que actualmente vivemos, dar um salto qualitativo no projecto nacional.

A realidade, em certos momentos da história, é de tal modo dinâmica, que não se compadece com a sua ossificação em normas que congelarn as alterações exigidas.

O risco que corremos é que o Estado que temos — prisioneiro de um diktat constitucional — não consiga evoluir para dar resposta aos imperativos que os cidadãos hoje de si exigem.

Recentemente referiu alguém — de cuja honorabilidade e fidelidade politicas ao regime são inquestionáveis — que no confronto entre a Constituição e a economia, esta última não sabe ler nem escrever, mas as suas exigências impor-se-ão inevitavelmente a normas constitucionais desajustadas ao tempo de hoje.

De país imperial, passámos a estado europeu, mas sempre com a segurança que os atributos da soberania aprendidos na faculdade continuavam íntegros.

E então, levámos o segundo trambolhão. Sendo as coisas o que são, tivemos que entrar para a então Comunidade Económica Europeia. Nessa altura, tendo ainda como suporte institucional o seu tratado fundador, onde se garantia a liberdade de circulação de pessoas, de capitais e de instalação de empresas. Mas tudo dentro daquela segurança de quem manda em Portugal somos nós. O resto é conhecido: de alteração em alteração, o Estado foi alienando do núcleo duro do que aprendemos ser a soberania. Desde a moeda, a incorporação vertiginosa e avassaladora de directivas comunitárias em todos os ramos da nossa vida, tudo tem vindo a desmanchar o que aprendemos, como factores identitários de um Estado.

Diz-se que “O futuro a Deus pertence”, mas creio que na agenda mediática

Divina, estes nossos problemas não merecem nem um pé de página. O que por ai vem, com a CIG, não se sabe muito bem o que será: se uma Constituição Europeia ou um Tratado adicional. Mas, certo certo é que é mais um afastar da identidade com que nos reconhecemos há séculos.

Pergunto-me se disto tudo virá mal ao mundo ? Afinal, vivemos em liberdade.

Urbanos, concentrados em áreas cada vez menores do território nacional, envelhecendo cada vez mais, por força do aumento da vida média e do baixo índice de natalidade; mais informados mas menos lidos; embrionariarnente xenófobos — paradoxalmente nós que emigrámos para o mundo todo — por força de contigentes de mão de obra africana e leste-europeia que fazem o que não praticamos para portugueses; católicos no papel mas frequentadores da religião televisiva do Big Brother; motorizados; proprietários de casas, carros, telemóveis e múltiplos cartões de crédito; endividados até aos limites do possível. Quem somos? E que Estado é este onde não nos reconhecemos?

Nunca houve tantos estudantes em cursos superiores; nunca houve tantas auto-estradas e carros para andar nelas. E consta que, depois dos nossos parceiros finlandeses, somos o segundo pais da União com maior número de segunda residência, por habitante. Duramos mais, em média, quatro anos de vida do que há quarenta anos atrás. Continuamos a comunicar-nos cada vez mais. Entre telemóveis e telefones fixos já ultrapassamos o número de aparelhos, com relação ao número de habitantes. E envelhecemos.

Este é, neste mundo melhor, em que hoje vivemos, o único factor que me parece mais determinante no nosso futuro.

Temos uma taxa de fecundidade semelhante aos nossos parceiros italianos e alemães. E não fora o já referido aumento da vida média e a imigração, seríamos hoje menos do que há trinta anos. E também somos urbanos, ou melhor, suburbanos. Quarenta por cento de nós vivem nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e oitenta por cento num rectângulo que vai de Setúbal a Viana do Castelo, tendo na extrema interior Santarém.

O que pensam os portugueses da vida?

Dinheiro para consumo, casa, carro, cartão de crédito.

O País não tem como projectar a experiência passada para entender o presente.

De País rural com valores sociais e valorações políticas muito bem estruturadas, passamos a pais urbano — 89% da população. Com TVs e telemóveis e uma parte do dia nos transportes. Com uma visão do mundo de telenovelas e a bigbroderização da realidade. Nós somos e só somos as 24 horas de cada dia.

Onde as empregamos? O que fazemos do nosso tempo ? O que queremos da vida?— Ter mais? Para que nos serve o aprendizado escolar — com excepção das disciplinas de utilidade prática — matemática, ciências naturais ? Continuaremos, por espírito de tradição a fazer dos nossos filhos Doutores, Engenheiros e Médicos. Para quê?

Que relação têm os filhos e os pais no Portugal de hoje ? A autoridade tradicional foi substituída por uma relação mais horizontal: em vez de ordens de pais para filhos há mais tentativas de convencimento por cooptação das ideias que se pretendem inculcar. Em matéria de costumes as barreiras foram postas abaixo. A TV nivelou as gerações e os seus comportamentos. Os hábitos sexuais diferenciados são aceites pelas diferentes gerações de modo mais tolerante. O que não significa a adesão pelos mais velhos, apenas a aceitação conformada face ao peso avassalador da TV que age como real formador dos nossos comportamentos.

De uma sociedade com garantia de emprego — desde que obtido um curso superior — estamos a criar uma oferta no mercado de trabalho inabsorvivel para a economia que temos. Se é verdade que há 16.000 licenciados à procura de emprego, também é verdade que há 320.000 estudantes universitários. Ou seja, há hoje tantos desempregados com curso superior, quanto quase que a totalidade de estudantes universitários há 30 anos.

A mediação social, tarefa da classe política, reflectirá essa situação ? Ou continuaremos a laborar em ideias abstractas, sendo essa a causa principal do afastamento da grande maioria dos portugueses da política ?

Estamos reduzidos a cobrar impostos e a equilibrar orçamentos como objectivo único de governação?

E valerá, para a nossa geração, como projecto de vida, esse estreitamento do mundo à mera contabilidade de deve e haver?

Mas se assim for, que alternativas temos? Mas não é esse o problema dos nossos concidadãos da União? Mais ou menos impostos, mais ou menos reforma, mais ou menos idade para a reforma?

E o que fazer dos nossos idosos? Com a urbanização galopante, o trabalho de homens e mulheres e a diminuição da área útil das casas, onde pô-los? Nos lares? Mas será esse o objectivo da vida?

Quando criticamos a classe política que temos, devemos lembrar-nos o povo que somos e a cultura em que nos transformamos. Não há como valorar, bem ou mal, onde estamos.

Isso é descrever a realidade, usando os óculos de visão do mundo que nos ensinaram e que já não existe.

É bem o caso de afirmar estarmos a assistir à contemporaneidade do não coetâneo. Vivemos biologicamente todos em Janeiro de 2004, mas compartilhamos instituições, hábitos, costumes, que são datáveis de tempos mortos, em muitos dos casos.

Não nos reconhecemos nos Tribunais, salvo quando exercem a justiça popular, tão semelhante à que aplicamos aos árbitros de futebol. De bestial a besta, o julgamento que fazemos dos agentes da magistratura é um tomado de emoções que pune ou premeia, consoante o time é nosso ou dos outros.

Vituperamos a classe política, por muitos considerada um bando de corruptos e arranjistas.

Horrorizamos as forças armadas, cuja existência nos parece supérflua.

Num voyeurisrno infantil, temos horror dos escândalos, mas despendemos horas intermináveis a esgravatar nomes para incriminá-los de tudo.

E, no entanto, o dia continua a ter 24 horas e o sol a nascer e a pôr-se, indiferente à nossa agitação estéril. O tempo “rex mundi”, como já referi antes, vai-nos subtraindo a todos o saldo que cada um tem para viver. Mas e o estado das coisas, será apenas este? Será que, iguais aos animais de Orwell, nos limitamos a comer, dormir e fornicar, sendo o Estado apenas o garante do exercício dessas funções?

Este é, na minha opinião, o estado das coisas.

E as coisas do Estado?

Na determinação cega de cumprir regras cabalísticas, ‘que ninguém sabe justificar, vamos estoicamente vendendo todo o patrimonio que o Estado acumulou e até privatizamos sectores de actividade, sem vantagem aparente, que não seja de diminuir custos imediatos com ônus inquantificáveis a médio e longo prazo.

De hospitais à cobrança de dividas ao Estado, tudo é privatizado, sacrificado no altar do irrecorrível déficit de 3% do P.I.B.

Enquanto nos entretemos com os escândalos tão cientificamente geridos da agenda mediática, escorrem-nos por entre os dedos as mágicas operações de privatização, renacionalização, fusão, incorporação e outros dos centros económicos nacionais mais relevantes.

A título de exemplo, a Galp, a EDP e a REN, que englobam sectores da actividade vitais para a economia nacional, vão sendo baralhadas como cartas de uma qualquer “bisca lambida”, merecendo, quanto muito, uns vagos e incompreensíveis artigos da imprensa económica da especialidade.

Pergunto-me se, no fim do caminho, haverá Estado, ou apenas gestores privados eleitos por 10 milhões de portugueses para exercerem funções sem conteúdo?

Mas como conseguimos chegar até aqui?

Desfeito o suporte ideológico que justificava a soberania, as funções privativas do Estado e o consequente projecto nacional, corremos o risco de nos transformarmos num enorme loteamento de 89.000 km2, entregue a um condomínio de promotores imobiliários, banqueiros e dirigentes de clubes de futebol. Reconheço, com muita mágoa, que 850 anos de memória colectiva se dissolvam numa enorme sociedade de consumo, cuja única identidade é, por enquanto, a de falar a língua portuguesa.

Mas, não me considerando nem sebastianista, nem um velho do Restelo, creio haver caminhos – necessariamente lentos na sua implementação – mas certamente garantes da manutenção do Estado, como factor da identificação nacional.

Em primeiro lugar dar prioridade à educação, não como mero acumular de informação, mas como formadora de compreensão dos factores aglutinadores da vida colectiva.

Disse bem quem descreveu que “os povos que não têm memória, estão condenados a desaparecer”. Daí a importância de desconhecer a nossa história e não rejeitá-la, mesmo nos momentos mais sombrios do nosso passado.

É preciso não julgar os homens do século XV com os olhos do século XX. Neles devemos exaltar a tenacidade com que levaram a nossa maneira de estar no mundo, ao mundo todo.

E a presença que deixamos nesses cinco continentes, mesmo após a descolonização.

Deixamos-lhes, a esses povos, a língua portuguesa, tantas vezes como língua franca de povos e etnias que só através dela se conseguem comunicar.

Deixamos-lhes, através dessa língua, não apenas um somatório de palavras – que a língua é muito mais do que isso. E a maneira de estar no mundo.

Ao contrário de outros colonizadores, que se limitaram a destruir civilizações e a saquear recursos naturais, deixamos-lhes testemunhos edificados, de Marrocos à India que – para grande vergonha nossa – estão muitas vezes melhor preservados lá do que os que cá temos!

Deixamos-lhe esta capacidade de fazer filhos a mulheres de todas as raças, fruto de uma velha cultura que percebeu que as alianças do sangue são as mais perenes e ficou em nós essa palavra mágica que é saudade. Desses mundos com quem contactámos e que fazem ainda hoje sermos os sonhadores universais que todos somos.

Mas, em paralelo é preciso que a educação imprima aos estudantes — de modo tão indelével que se tome para eles uma segunda natureza — que o respeito pelos direitos, liberdades e garantias de cada pessoa é a base da nossa civilização. E que a origem de todas as ditaduras, venham elas vestidas com os adjectivos que vierem, está na invocação da defesa da supremacia dos interesses de grupo sobre os indivíduos. É para garantir os interesses de cada cidadão que se criam sanções sociais. Nunca para retirar direitos ao ser único que cada um de nós é, para delega-los em terceiros que os exercem em nome da comunidade.

Em segundo lugar há que preservar aquelas coisas do Estado, que são a sua cabeça, tronco e membros:

As Forças Armadas. Hoje não como força de conquista, mas como presença necessária e garante da pacificação de zonas em conflito.

O Direito. Nós, que desde os primórdios da nacionalidade tivemos a sensibilidade jurídica de atribuir ao poder local — aquele que mais perto está das povoações — peso e relevância no nosso ordenamento jurídico, devemos reencontrar esse caminho de teremos através de leis justas, proximidade entre eleitos e eleitores, pois só assim um poder legitimado.

E que aí, no reconhecimento dos direitos dos povos, estava o embrião — anterior à magna carta inglesa — dos direitos de liberdades e garantias, hoje arquitrave do nosso sistema legal.

Devemos investir na pesquisa científica, sobretudo em áreas em que tradicronalmente nos destacamos, como a engenharia e a medicina.

Devemos conferir aos nossos representantes diplomáticos os meios para neste mundo tão concorrencial promoverem a nossa presença económica e cultural no mundo. Devemos aceitar o inevitável aggiornamento do conceito de soberania, no âmbito da União Europeia, defendendo sempre a nossa componente atlântica e as nossas relações com os Países de língua portuguesa. Devemos cuidar dos nossos velhos e das nossas crianças, sem permitir mercantilizar o fim de vida de uns, ou a desigualdade de oportunidades de outros.

São estas coisas que fazem com que as coisas do Estado justifiquem para nós e gerações vindouras, que nos não envergonhemos perante o estado das coisas que lhes legarmos.

Temos de, de modo narrativo, ver que poucos países, em trinta anos, sofreram uma tão radical transformação. E procurando envelhecer rapidamente as imagens quotidianas de um dia a dia banal, tão longe dos arquétipos grandiosos que nos serviram de base curricular, talvez seja bom apreciar que o sol nasce todos os dias e todos os dias cabe a cada um de nós dar aos nossos concidadãos o Estado que pretendemos.

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