Um verdadeiro cronista at large, como eu tento ser, não se debruçaria sobre as cretinices do dia a dia.
Viveria sim, num presente continuo (continuo a ler Gertrude Stein) deixando que os espaços, passado e futuro, se confundissem em, enfim, eu sei lá mais quê. Mas a pessoa não é de ferro.
Regressado a Portugal no frenético ambiente marceliano do pós eleições a realidade assalta o cronista e o espaço filosófico steiniano ainda cheio das alegorias da Biennale esvai-se como gelo e fogo (isto aqui, também não é original. É Bob Dylan “she’s true, like ice like fire.”). Poderia contudo arrancar daqui com uma nova linha absolutamente at large porque o Dylan até escreveu “people sharing roses”. Ora sendo “a rose is a rose is a rose is a rose” (G.Stein outra vez), eu, verdadeiramente at large, iria por aí fora desinibido e desimpedido qual Rebelo de Sousa beijando quem encontrasse pela frente. Mas não, não sendo de ferro, a pessoa ouve o grande Jerónimo de Sousa declamando certezas sibiladas através de lábios grossos de classe operária que se entreabriram para ulular o desapontamento da injustiça gritante dos portugueses estarem a votar cada vez menos na vanguarda do proletariado.
A pessoa ouve e regista verbatim : – “Por nós falamos, para quem nos conhece, é claro que o PCP nunca determina a sua orientação e propostas por qualquer resultado eleitoral.” Fim de citação.
O desvio do cronista das suas reais vocações vem daqui. O que é que a pessoa faz quando ouve no seu país de Abril a declaração de Outubro? Ainda por cima lavrada com ênfase em tronitruante registo público a afirmar que um dos partidos mais emblemáticos da nossa busca de perfeição social “nunca determina a sua orientação e propostas por qualquer resultado eleitoral “. É que isto aqui já não é o suicidário Passos Coelho, de boa memória, a dizer coisas amalucadas, quando já ninguém o ouvia, tais como “que se “lixem as eleições”. Isto aqui, vindo do PCP é doutrina. Isto aqui, num país onde a Constituição diz em letra de forma (está bem pronto. É só no Prólogo.) que vamos para o Socialismo, claro que pode meter medo à pessoa. E meteu mesmo.
É que o Partido Comunista Português, diz o herdeiro de Bento Gonçalves agora re-inspirado nas profundidades que a filosofia política que o nacional torneirismo mecânico obviamente produz (no Arsenal da Marinha e na Siderurgia Nacional), o Partido Comunista Português nunca determina a sua orientação e propostas por aquilo que os eleitores querem. Isso, depreende-se do que Jerónimo de Sousa afirma, é lá para os burgueses.
O PCP está-se mais do que nas tintas para as eleições.
O PCP não liga ao que as eleições dizem. De facto para o PCP que se lixem as eleições. Porque para o PCP não existem de facto eleições.
O PCP é, afinal quem vive nesse presente continuo de Gertrude Stein em que existe porque existe não inscrevendo nada do que se passa no quotidiano na sua narcísica imagem de perfeição absoluta (isto, claro, não é meu. É José Gil no seu melhor).
E nós ouvintes soubemos disto como? Pois, como diriam os meus referentes anglo-saxónicos, pela próprio voz do cavalo. From The Horses’ Mouth soubemos ipsis verbis (não digo sic porque já não trabalho para o Balsemão) que o PCP quer “que as eleições se lixem”. Foi o Geral Secretário que o vociferou na Sala das Fontes, apropriadamente mesmo junto ao Pátio dos Bichos, em pleno Palácio de Belém depois de uma sereníssima audiência pós eleitoral com o Presidente da República para lhe dizer, muito provavelmente, que o PCP não tinha gostado da maneira como os republicanos andam a votar. E provavelmente a exigiu medidas presidenciais. Porque isto revolta qualquer comité. Central, lateral ou periférico.
Então os portugueses não querem ser comunistas? E pior ainda. Já não querem Câmaras Municipais comunistas. E – “Anda o Senhor Presidente no meio das ruas aos beijos a gente desta”.
Não disse mas terá pensado o sucessor do sibilante Carlos Carvalhas que sucedeu ao sibilino Álvaro Cunhal. “E, terá pensado Jerónimo de Sousa, o que é que vou fazer aos baladeiros comunistas, aos animadores comunistas, aos vereadores comunistas, enfim aos artistas comunistas que são afinal todos os comunistas?” E, já agora, porque é que eu dedico uma madrugada inteira ao que diz Jerónimo de Sousa. Será por receio das consequências do que quer que o PCP faça?
Nada disso. Até porque em termos de ansiedades que me causam os zelotas políticos, Kim Jong Un e Daniel Oliveira cumprem e saturam integralmente esse papel.
A razão deste desvio da minha orientação at large é porque a complexa estrutura mediática de Portugal, cheia de jornalistas doutorados, cheia de Prémios Gazeta, obviamente face a estas declarações de Jerónimo, fez gazeta às sua funções de relatores da verdade (esta do Gazeta e gazeta, é uma imagem bem pífia, mas, para quem é, bacalhau basta).
Os media não reproduziram, não analisaram, não destacaram, não comentaram e deixaram que o vento deste Outono que sopra sobre comunismo internacional (imagem bem melhor que a da gazeta) levasse as palavras do Secretário Geral de um partido eleitoralmente no Inverno do seu descontentamento (lindo. Mas é Shakespeare primeiro e Steinbeck depois). É esta ausência de crítica pública ao que realmente denota a brutalidade do autoritarismo que norteia o Partido Comunista Português que me preocupa e que me leva a concluir que Portugal não tem media que ajude o país a existir.
Sem reflexão publica estamos tão isolados como o leitores do Clarim de Pyongyang, do Jornal de Angola ou do Expresso. Não sabemos o que se passa. Mais vale estruturar as nossas decisões pelo que dizem as cartomantes das televisões nacionais e ir tomando Calcitrim efervescente, porque se seguirmos o que os media nacionais nos apresentam, não sabemos nada e ficamos descalcificados. E eu que queria falar da Biennale outra vez. Que está quase a acabar. Prometo que, a menos que Jerónimo volte a dizer que afinal não é o povo quem mais ordena (quando até Marcelo afirmou isso na sua tomada de posse) (e os media também não notaram), ou que António Costa tire um Euro que seja aos dois que vai aumentar na minha pensão de reforma, eu vou já começar a trabalhar num escrito at large sobre a Biennale de Veneza.
Mário Crespo
Republicou isto em O LADO ESCURO DA LUA.
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