
Terei uma enorme biblioteca pessoal e tenho cada vez menos anos para a ler. E, no entanto, continuo a acumular responsabilidades que me subtraem cada vez mais tempo ao tempo restante. E, para além disso, continuo a comprar cada vez mais livros.
Se o paradoxo de Zenão, discípulo de Parménides, estiver certo e, no final, a tartaruga conseguir ganhar a corrida contra Aquiles, então eu lerei a última linha do último livro no último minuto do meu tempo de existência: esta corre ao meu encontro, tentando atingir o ponto em que me encontro, eu vou-o reduzindo, vivendo, cada vez mais à sua menor dimensão.
É esta a minha pequena angústia privada. À escala interior é, porém, uma agonia cósmica. Cada livro que procura estante, cada dia em que procuro tempo tentam a improvável equação, cada dia que dou por perdido, cada dia em que o tempo ganhou espaço.
Ao contrário do que se supõe, não se vive aumentando tempo, vive-se por que se vai diminuindo tempo, até ao ponto em que nos tornamos naquilo que somos, a substância tornada essência, a união do fim como princípio.
E, mais ainda, isso de a vida ter os seus determinismos que ultrapassam o livre querer. Ou fazem-no no interstício de uma circunstância que torna tudo imperceptível: a escolha livre pressuporia uma escolha livre seguinte, mas sucede que cada uma limita a oportunidade que se lhe segue.
Esta noite de Sábado, ao ter de escrever a crónica para Domingo e, uma vez mais, sem tema, apliquei este meu teorema caseiro ao mundo que me cerca e tudo ganhou coerência e sentido.
Na teoria dos jogos, de que o xadrez como jogo de eliminação pode ilustrar, o movimento de cada peça reduz a margem de manobra do outro jogador. Seja na guerra, seja na paz. Os rituais de acasalamento tornam o amor unitivo.
Num único caso tudo se pode tornar ambíguo. Quem joga contra si próprio ganha quando perde. Stefan Zweig escreveu isso numa novela em que o jogador de xadrez se desdobra em dois. Porque viveu a vida de igual modo, deu-se a morte no Brasil.
Escrevi isto e fui à procura do livro, para dele tirar uma frase que fosse, e, surpresa nocturna, não o encontrei. Guardo todos os livros dele com que me foi possível ter tido encontro, desde os que ainda foram traduzidos pela Alice Ogando, até aos com que me cruzei, primeiro ou depois, em francês e inglês. Poucos, estes últimos. Dois apenas.
Faltava um. Precisamente aquele onde estaria o conto sobre o jogador de xadrez. O livro a menos. Guardo dele memória como o livreiro Jacob Mendel, sob quem escrevi, a 3 de Abril de 2011, em sentida homenagem de leitor um texto com este excerto:
«Num mundo que vai perdendo classe e em que a categoria pessoal se tornou uma excrescência, em que uns truões sonoros passam por senhores, macaqueando, vocais não se sabendo ridículos, o que julgam ser sinais de estirpe, Stefan Zweig é a grandeza senhorial feita escrita. Mesmo quando fala do humilde, sentindo-se um deles, mesmo quando o coração triste de todos os outros é o seu coração entristecido, ele é, na Literatura, a totalidade da Humanidade em finíssima observação de requintada forma.»
Perplexo, como se a realidade tivesse quebrado em estilhas a lógica da minha geometria, lembrei o José de Almada Negreiros: «Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam! Não duro nem para metade da livraria! Deve haver certamente outras maneiras de uma pessoa se salvar, senão… estou perdido».
Com um livro a menos na estante, e mesmo com o tempo usado a procurá-lo e o que usarei amanhã numa nova busca, talvez eu me salve.