Eu tinha vinte e poucos anos. E conversando com Armando de Castro, num dos corredores do Tribunal de São João Novo, no Porto, aguardando o nosso julgamento – o que traz uma outra história, porque, como as cerejas, a vida são frutos que se entrelaçam – queixava-me eu do destino da minha geração, pois os que, incorporados no serviço militar, naqueles anos de guerra em África, nenhum horizonte de esperança tínhamos pela frente se não a deserção, ou a mobilização de encontro à possível morte ou ao estropiamento mental.
Era a minha forma de sentir. E senti-o quando li um livro de testemunho, epistolar e poético, carinhosamente editado por seus pais, de um desses militares que a vida interrompera numa picada, o José Bação Leal.
Tudo isso é um outro mundo.
De Armando de Castro reuni tudo quanto consegui encontrar e tudo isso ficou então numa das casas onde já tive lar. E onde se terá tornado inutilidade, valor apenas sem sentimento, esvaído, pois.
Do Bação Leal tive, por isso, de procurar de novo o livro que já tivera e que tão fundo me rasgara a sensibilidade.
Num desses blogs em que me vou semeando pelo espaço escrevi sobre esse livro reencontrado e recordo-o enquanto escrevo esta crónica de Domingo:
Tive-o. E ficou por uma dessas casas por onde uma pessoa vive e deixa ficar. Talvez tenha sido o morno pudor de não pedir a restituição ou a certeza fria de que já não o encontraria. Mas procurei-o anos a fio. Há uns meses, o acaso quase me tornou o reencontro em realidade. Mas estava reservado para alguém que se antecipou no mesmo preciso dia.
Desta vez foi uma conversa com o José da Cruz Santos, da “Modo de Ler”. Foi buscá-lo à estante. O Urbano Tavares Rodrigues falara-lhe nele. E prefaciara a obra.
A guerra matou-o, em África, a José Bação Leal. Sua Mãe guardara, como ao menino em seu regaço, «rascunhos que ele deitava fora», versos. A eles o livro soma cartas, breves garatujas, densos sentimentos tornados pensar.
Tudo começa no Alentejo, em Mourão, desaguando em dor na dorida África colonial.
A 7 de Junho de 1965 foi transferido para Vila Cabral, em Moçambique. Escreveu então: «aqui as acácias ainda não floriram. Sangram (por agora) desordenadamente no olhar humano da negra gente. Gosto das acácias de Dezembro, deste verão póstumo a rolar na montanha».
O livro comove, são lágrimas tornadas escrita, versos, cartas, apontamentos.
«Os únicos católicos Bons que encontrei seriam igualmente Bons, mesmo sem Deus», confiara ao seu amigo César, no dia antecedente, escrevendo do Alto Molucué, «poeticamente exausto, verticalmente só» se declarara em Mafra no ano de 1963.
«Um legado de sangue», assim chamou ao livro o seu íntimo prefaciador. «Sucedem coisas curiosas», escrevera José Crisóstomo em verso magoado: «ontem imaginei poder beber/um calmo desespero por uma incerteza/um suave adorno das rosas negras/que são o sangue do meu sofrer//Não consegui porém e bebi tristeza/uma tristeza feita de angústia serena/quase reconfortante mas sem paladar».
Quase ninguém sabe hoje quem é qualquer deles.
Armando de Castro, marxista, trabalhou duramente na advocacia para poder estudar e escrever. Autodidacta. Tentou ser professor antes de 1974 mas a informação da polícia política barrou-lhe o caminho. Os seus escritos centram-se na Economia e na História Económica. Baseado em Gama Barros publicou também em onze volumes a “Evolução Económica de Portugal (séculos XII a XV)”. Analisou o que Henrique da Gama Barros analisara sob a perspectiva marxista. Terá sido um dos poucos teóricos portugueses que terá lido de facto o “Das Kapital”, afinal um livro de crítica da economia política que ainda hoje explica a teoria dos ciclos económicos e o carácter endémico dos ciclos do capitalismo.
Quer uma das obras, quer outra, vinte e dois volumes, pois, tiveram igual destino. Talvez a casa onde mos aprisionaram já nem exista e eles tenham tido funesto fim. Eu ainda escrevo.
Voltando à minha tristonha conversa de então naqueles corredores que voltariam ao meu encontro tantos anos depois. Olhando-me com compaixão amiga, para este seu então jovem colega, tomou-me o braço e disse, no estilo tranquilo que era o seu: «suponha o que era a nossa perspectiva do mundo, quando eu era novo, nos anos quarenta, a Europa dominada pelos totalitarismos, Portugal um país tão retrógrado. Que esperança tínhamos? Sabe o que lhe falta? Perspectiva histórica, meu amigo.». Não mais esqueci. Daí em diante perdi a arrogância, mesmo a da dor e da angústia.
O Público fez uma edição fac-similada das “Poesias e Cartas” de José Bação Leal integrada numa colecção de livros proibidos pelo regime salazar/caetano. E assim ‘recuperei’ o que emprestara sem retorno em 1972, ano em que saí de Mafra para o destino comum dos jovens daquele tempo.
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Obrigado Eurico.
Ainda bem que nem toda a censura ou queimas de livros dos retiram as ‘Aparições’ que necessitamos para viver.
Abraço.
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