
Este Verão fomos uns dias a Gouveia porque precisávamos de ter uns dias de descanso. E eu só podia ter aqueles porque nos outros descansaria a trabalhar.
E em Gouveia fui procurar a Biblioteca Municipal e nesta procurar o que haveria sobre Vergílio Ferreira. E havia uns livros expostos num escaparate logo à entrada no patamar após escadas. E, porque me notaram o interesse, abriram a porta de uma sala com o seu nome, onde está a sua biblioteca pessoal. E o sofá em couro onde se sentava a escrever. E a manta escocesa em que aninhava os pés. E a tábua, sovada pelo tempo, que colocava em cima de um dos braços do sofá e dos joelhos, em cima da qual escrevia, perna traçada, cigarro na mão, letrinha de mosca, linhas cerradas, caneta de tinta permanente.
Passei os olhos pelos livros, um pouco sem tempo, apesar de todo o tempo. Assim tivesse sido possível, tê-los-ia tirado das estantes fechadas para respirá-los. Exalavam o ar de terem sido lidos, nas lombadas sulcos a demonstrarem terem sido folheados, os cantos esbeiçados do vaivém dos que são manuseados.
Estavam, porém, reclusos, dormentes neste Verão de incêndios. E eu era um simples leitor, forasteiro, passageiro de ocasião. Livros da sua profissão de professor, livros de filosofia francesa e alemã, muita ficção, alguns de ideias sobre a sociedade e a política. Mais, muitos mais, sobre a cultura.
Tinha visto a tábua numa fotografia de luz esbatida, a preto e branco, que Helder Godinho e Serafim Ferreira arquivaram na foto-biografia que lhe dedicaram. E como eu gosto de foto-biografias e compro-as e guardo-as e folheio-as como se álbuns da minha família, mais até do que os álbuns da minha família. Porque estão ali, os objectos dos meus afectos, como se à porta de suas casas, franqueando-me a sua intimidade, as suas dores diluídas entre os amigos, os lugares e os objectos. E tudo morto. E que eu faço reviver quando abro a quase sempre pesada capa do livro que, naquele mágico instante não é a lousa do seu túmulo. E vivem. Como vive agora que fui buscar o livro, precisamente porque escrevo. Estava na estante e de olhos fechados eu iria lá ao encontro da sua presença, sabida e desejada.
Quase ninguém hoje lê a sua obra. É uma escrita triste num tempo em que se querem alegrias e contentamentos. É uma escrita densa que sobrecarrega a mente com ideias num tempo em que se vive soterrados em factos.
Mesmo a “Conta Corrente”, o diário que amava e odiava mas de cujo registo regular não se conseguia livrar, anotando grandes e também ridículos coisas, está perdido para sempre, ida que foi a edição da Bertrand, em duas séries, cada uma a de seu tempo. Os sedentos de voyeurismo, até esses, não viram ainda ali o filão da bisbilhotice.
Só a “Aparição” que foi tornado livro de consumo obrigatório no secundário e, por isso, condenado à maldição, como o foi no meu tempo “Os Lusíadas” que ser jovem é ter asco ao necessário.
Este Verão, acho que depois de ter estado em Gouveia, soube que vai sair um livro sobre os seus tempos de seminarista. Tal como Lauro António fez um filme sobre a “Manhã Submersa”, o livro em que ficou essa parte excruciante da sua vida, em garoto. É tema fácil: a reclusão, submissa, a fé tornada ladainha mastigada e novena fria, a disciplina de palmatória, o frio, o gelo do casarão e da alma infantil, o Seminário do Fundão: «um silêncio mortuário apodrecia ao longos dos muros ou subia largamente de grandes braços abertos das abóbodas (…) um silêncio húmido e submerso com um levedar de origens». E os subentendidos possíveis ante a promiscuidade. Como se me torna nojento quem, ante a grandeza, se entretém com dejectos. Mas há leitores ávidos disso, talvez para que tudo se nivele e se sintam menos raquíticos.
Escrita de ímpetos, gritos na noite, obsessões, polvilhada de rancores que o tempo fez surgir. Escrita de um danado, lançado do Céu à Terra por deuses impiedosos.
Vindo do neo-realismo, virou-lhe as costas com o romance “Mudança”. Não lhe perdoaram a deserção. Não se ficou, porém. Virou-se a eles. Com todas as forças de alma. De «neo-realeiros» para baixo arreou-lhes em grande, vergasta na mão. Proclamou que há mais na estética do que a do panfleto, mais Arte do que a luta pelo pão.
Acumulou ressentimentos. Injustiçado ter-se-à tornado injusto. Dá acanhamento e riso ler hoje esses actos de raiva contra aquilo que execrava, surgem lágrimas com tão profunda e dolorosa compreensão da tragédia existencial do Homem.
Este Verão fui a Gouveia e depois a Melo, a aldeia da sua origem.
Pronto, é isto que venho contar esta semana. Os jornais estão carregados como cachos de outras coisas. A rádio e a televisão repetem todas essas outra coisas. Eu tenho estas e sobretudo falta-me tempo. Olho para todos os livros que escreveu e para os que consegui encontrar dos que escreveram sobre ele e pergunto-me nesta manhã de Sábado se haverá tempo. E peço tempo ao Tempo para que seja possível.