Quando era miúdo havia aquele sonho de, ao passar a quarta-classe, nos oferecerem uma caneta de tinta permanente, para os mais afortunados uma Parker 21. Abastecia num tinteiro, através de um êmbolo mole porque em borracha, montado numa pequena armadura metálica. Borracha que se dizia então “caoutchouc”, à francesa, por ser talvez refinado o uso da língua de Montherlant, maldito seja, a que estava em voga na Corte dos czares. A tinta em uso era a azul.
Havia na gradação dos azuis, «a cor que deixa o mar entrar em sua casa», como anunciam as tintas Barbot, a paleta social, que visava como horizonte cromático de elite o lápis-lazuli faraónico, arquétipo da harmonia e perfeição.
Além disso, ao contrário do preto, quando surgiu a fotocópia de baixa resolução e a preto e branco, e com ela a reprodução em série, permitia distinguir o original de uma cópia. Fotocópias que começaram por ser térmicas e impressas num papel viscoso que, a passagem do tempo ia fazendo empalidecer e, no final, sumir, quanto estava replicado. O que seria excelente quanto a certos livros na estante, a inversão da tragédia do Jorge Luis Borges: em vez da cegueira do leitor, a invisibilidade progressiva do escritor.
Acordei hoje a pensar nisto porque é dia de escrever a crónica de amanhã e, como costume, não tenho assunto. E a farpa está com as rotativas paradas à espera que eu acabe os meus “chumbos” na “Linotype”, se é que quem lê faz ideia do que tudo isto seja.
Em 1921 a Parker lançou a “Duofold”, um prodígio de escrita e de elegância. Não excessivamente volumosa, como certas outras, que rivalizavam com os “havanos” na opulência e se tomavam na mão como sinal de carteira farta e de poucas letras – aptas a firmar cheques e disso evidência, mas quantas vezes “letras comerciais de favor” ou, nas piores circunstâncias, livranças “em branco” – e tinha, a rematá-la, o aparo com bico de grossura média, em ouro, trazendo à escrita a alquimia de tornar o chumbo do real em nobre metal da fantasia.
Comprei uma, réplica claro, há trinta e poucos anos, regressado do longínquo Oriente, esfíngico e fatal. Perdi-a em Coimbra, que é um local adestrado a perderem-se coisas. Teimei e comprei outra, vencido o enguiço, porque não me lembrei de atar um nó a cabo de vassoura e escondê-la atrás da porta. Se não acreditem, tentem. Juro que vi funcionar, o Maligno ajudando.
E voltei a encontrar-me com ela quando traduzi e fiz editar as memórias do filho do Calouste Gulbenkian, esse exótico, Nubar, escritas há cinquenta anos, mas escondidas do conhecimento da generalidade dos portugueses, apesar de tanto nelas falar, pouco amavelmente é certo, de Portugal e da escolha do país para sede da Fundação. Num momento da sua atribulada vida, agente do MI9, o serviço britânico de guerra secreta incumbido da infiltração juntos dos refugiados, deslocando-se a Perpignan, em busca de um “passador” amigo, habituado este, à dureza do convívio com contrabandistas, não levava melhor santo e senha – ó Velha e incorrigível Albion! – do que a pergunta – que deveria ser discreta – «do you have a Parker? A Parker Duofold pen?», isso supondo que os “boches” achassem a mais natural conversa naquele local e entre aquelas figuras, o corpulento e piloso arménio e o seu contacto “franciú”, ambos ao serviço dos “bifes” e da causa aliada.
E, pronto, penso que, uma vez mais, sem ter tema, já estou com a crónica quase escrita. E a falar como se fosse peça de museu, num mundo que já não há.
Falta só o episódio final e para ele um toque de contemporaneidade.
Vá lá saber-se por que bulas, comprava ao Sábado a edição de fim-de-semana do “Financial Times”, sobretudo – eu pecador me confesso – por causa da luxuosa revista “How to Spend it”, onde se anunciavam, em magnífico papel, peças de refinada joalharia, jactos privados, e pose de modelos, esquálidos de hibridismo género encadernados em requinte, condomínios de excepção e hotéis de charme, tudo o que eu não tenho nem preciso ter, ânsias, talvez, de “voyeur” recalcado.
Ora num desses número vinha uma pequena notícia sobre uma loja em Nova York que só vendia lápis de alta qualidade. A loja chama-se “The Pencil Ladies”. E um dos lápis que ali anunciavam, como requinte, era o nosso “Viarco”. Claro que lhes escrevi de imediato. E respondeu uma das ladies, assinando Caroline, amável.
Outro dia perguntei pelos “Viarco” numa “Staples”. Um “há pois é…” a típica resposta tuga que quer dizer tudo, nada dizendo, o subentendido feito linguagem. No caso creio que queriam dizer «ah pois é, não há!».
…
José António Barreiros escreveu em azul. A Parker perdeu-se, mas a tinta não borrou. De todo!