Em seguida farei um breve enquadramento da estética percorrendo uma linha muito sinuosa da História Humana. Não tem como objectivo ser uma circunferência fechada de conhecimento, mas antes servir como uma provocação ao pensamento, uma espiral em perpétuo crescimento.
O enquadramento pré-histórico
Desde os tempos ancestrais, naquele momento em que o homem ganhou consciência de si, uma primitiva identidade – retratada no grupo de ‘macacos’ que descobre o poder da ferramenta; que existe a noção de legado. Mesmo antes da escrita enquanto forma de transmissão de conhecimento estivesse aferida, o conhecimento Humano era passado oralmente, e mais importante, através daquela que ficou conhecida como a pintura rupestre.
Qual terá sido a reacção imediata de Marcel Ravidat, Jacques Marsal, Georges Agnel e Simon Coencas quando descobriram as decorações parietais das grutas de Lascaux? Será que os quatro adolescentes primeiramente olharam e pensaram estar perante rabiscos feitos por alguns amigos da escola? Amigos dos seus pais, avós? Ou será que de imediato perceberam serem estes as primeiras marcas artísticas referenciadas deixadas à 15.500 anos pelos nossos antecessores?
Se os rabiscos estilizados representam essa capacidade de comunicação através do que se pode chamar uma estética depurada, a marca física de uma mão representa a identidade, a assinatura para a posteridade. Estivemos aqui e foi isto que fizemos.
Mais que o legado terreno da existência humana, trata-se desse toque estético que perdura visualmente até à actualidade. A primeira forma de transmissão intra-geracional de conhecimento sem que o mesmo fosse passado como tradição oral.
A fotografia religiosa
Por sermos seres dotados de lógica, com capacidade dita analítica, tendemos a compartimentalizar os nossos desejos e anseios perante a vida. Essa verdade é também aplicada ao sentido da estética, marcada sempre por essa necessidade em nomear o gosto entre paredes estanques que o definam.
Quem mais o fez, e quiçá como resultado dessa evolução do pensamento analítico, foram os grandes pensadores do final do século XIX, início do XX. Visto a arte, esse eterno mistério, estar cada vez mais ao alcance de todos, deixava de ser apenas referência de elite e passava a fazer-se presente enquanto influência directa no sentido estético do indivíduo. A imagem estática torna-se facilmente capturável e a sua disseminação uma norma. Imprimir esse fragmento do momento é uma realidade desde que, em 1826, Joseph Nicéphore Niépce capturou rudimentarmente essa vista campestre que se perpetuou no imaginário colectivo. Ainda assim, capturar o momento sempre foi a forma estética de se transmitir o conhecimento Humano.
Novamente se refere a necessidade gráfica em se exprimir ideias e pensamentos que perpetuem a identidade estética do Ser.
Olhando à distância, num mundo onde a tecnologia aos nossos olhos seria considerada rudimentar, supõem-se que a decoração caseira de um egípcio com baixos rendimentos não teria a sumptuosidade das decorações palacianas do seu soberano. Ainda assim, no que concerne a preparação religiosa para a travessia para o além, até o mais humilde buscava essa estética cumpridora de um código pré-estabelecido. Sob esse ponto de vista, e até ao surgimento desses pensamentos chamados modernos, toda a questão da estética passava por uma referência de cariz religioso.
Podia ser uma decoração rígida e austera, mas a divindade em agonia estava sempre espalmada numa parede em sinal da lembrança. Ainda era um ornamento sem delitos.
O código genético
A estranheza resultante da análise do espaço habitado milénios antes da invenção de uma fonte de iluminação eléctrica adensa o mistério dessa estética de decoração de paredes em espaços fechados. Pensar que os sarcófagos foram integralmente pintados e decorados sem auxílio de algo mais que um archote ou reflexo de luz solar como fonte de iluminação demonstram a importância que a apropriação artística do espaço tem.
Olhar para as decorações nas câmaras do sarcófago de Tutancámon, miraculosamente preservadas, é inquirir justo como foram as mesmas possíveis. Não só isso, como reconhecer a necessidade do Homem se representar, buscando essa forma estática que nos transmita movimento. Um perpetuar da memória. Aqui, e pela decifração através da tradução por comparação, existem algumas das primeiras formas de escrita, ao caso hieróglifos, que contêm em si mais que palavras, mas ideias de transmissão estética.
Desta mesma forma, em culturas que aparentemente não existiria (que se saiba) uma co-relação cultural de proximidade, as mesmas tipologias arquitectónicas surgem como resposta às questões fundamentais. Seguramente a maioria advém da resposta prática aos problemas do quotidiano e da sua solução mais funcional, mas é interessante ver como parece existir uma estética comum a todas. Desde as pirâmides no Egipto, passando pela China, Cambodja, até ao cume dos Andes, o gesto de erguer uma forma monolítica que se eleve aos céus, como se num contacto Divino, são referências universais. Do mesmo modo, a decoração parietal parece ser também comum a todas. Assim, o gesto de colocarmos um quadro ou fotografia emoldurada numa parede, mostrando com orgulho a família num momento retro-vintage está enraizado no nosso código genético tanto quanto deixar os plásticos de protecção no sofá pra que valha mais na revenda.
O minimalismo Barroco
No mundo contemporâneo, e mesmo nos casos fashionistas designados de minimalistas, entrar em casa alheia e não encontrar nem que seja uma reles reprodução do menino da lágrima a adornar o salão, parece de imediato estranho. Mais estranho são as pessoas que, de alguma forma, têm aversão a colocarem quadros nas paredes por forma a não ferirem a mísera camada de gesso mal untado que a maioria das casas tem como base designada de parede. Pode-se dizer disto rizível, mas, e da mesma forma que os extra-terrestres e as bruxas que nunca ninguém viu, que ‘los hay, hay!’.
Qual seria então o pensamento Barroco acerca da estética. Uma aristocracia diletante onde o refinamento era trazido pelo exagero exacerbado das conjugações pictóricas e onde o ornamento nunca era em medida suficiente. Percorrer os corredores de Versailles é chocar com uma magnífica encenação creditada sob o nome de ‘Plaisirs de l’Île enchantée’ para a celebração monárquica que causaria a Guerra da Devolução em 1667. Três campanhas de construção depois, dois réis e uma deposição da monarquia vigente, o Palácio é vandalizado e todo o seu conteúdo vendido como sucata. Uma vez mais o que sobra é o reminiscente do intuito Humano, e a depuração daquilo que fica transforma-se no fundamental.
Assim se vê e percebe o cúmulo da estética estar intimamente ligado à ética, onde o funcionalismo da racionalização humana prevalece acima do gosto daquilo que se diz estético.
A amnésia histórica
Pensar numa vida estéril de estética é negar a existência da História do Homem. Ela edifica-se justo nessas camadas sobrepostas que trazem uma patine como selo de garantia e continuidade. Já se viu que, após momentos contornados da História recente, tentar apagar ou aniquilar a existência de um símbolo ou ícone meramente serve para que o mesmo ganhe uma dimensão proibida, muito ao gosto desviante do ser Humano.
Tentar fingir que o Holocausto não existiu só faria com que o mesmo, pela amnésia tão característica dos Homens nas sucessivas gerações, pudesse se repetir. Dito assim parece um exagero, mas quantos eventos Históricos nos chegaram hoje pelo simples facto de estarem escrevinhados numa parede? Mais, a linguagem escrita ganhou essa maior dimensão justo aquando do seu confronto conjunto naquela que ficou conhecida como pedra da Roseta. Se não fosse por ela, os enigmas da antiguidade pré clássica seriam meramente figuras desenhadas a contar uma história sem enredo.
Desta forma, através da passagem do tempo, a essência do estritamente essencial (passando a redundância), permanece e sobrevive ao tempo. Olhar para um templo Grego e imaginar que o mesmo não seria resplandecente em mármore branco imaculado, mas sim um painel publicitário a uma fábrica de tintas e pinturas, parece inverosímil.
Num olhar cinematográfico, reconstituir a antiguidade clássica passa sempre por essa estética artificial de sujidade. Podia que há época fosse novo e por estrear, mas só a assumimos como real a partir do momento em que a mesma tenha essa patine histórica. Podemos até saber da verdade, mas gostamos da mentira da estética. Assim já faz sentido.
Conclusão futurista
Interessante será fazer o exercício contrário, pensar com que olhos será vista esta herança estética que hoje relegamos ao futuro. O que será a visão dos nossos descendentes sobre aquilo que restar dos nossos dias. A arquitectura que nos dias de hoje se constrói não é feita, ou sequer pensada, com a densidade megalítica que todas as referencias pré-clássicas, e quem sabe, derivado a isso, a sua presente existência desapareça como escombros não identificáveis. Ainda assim podemos imaginar que algum reduto da existência humana sobrevive soterrado e guarda os resquícios dessa História. Nesse caso podemos dizer que tudo o que sobraria, de acordo com aquilo que nos chegou do passado, seriam as lembranças da arte urbana. Uma visão da vida vivida no quotidiano por aquilo que hoje nos define como Sociedade.
A memória será feita de grafitis e restos de imagens de propaganda. A arte enquanto forma de arte maior, feita em materiais perecíveis, deixaria de existir, e a química lixiviante do tempo faria o mesmo que com toda a arte da antiguidade. À distância seriamos uma urbe feita de grandes monumentos descoloridos e restos de vidas passadas.
Será que assim faz sentido um sentido da estética?