Passando a óbvia publicidade a uma pomada analgésica, o título que encabeça a crónica de hoje prende-se com o trocadilho certeiro surgido da polêmica entre o cantautor José Cid e os Transmontanos que ele, há seis anos num programa de humor, insultou:
Em Trás-os-Montes querem todos partir a
Thrombocid
Certo, é a reacção humorística de algo que, a não ser patético, se torna sintomático desta nova forma de processar a Democracia em rede social.
Ali, num mundo de perpétua virtualidade onde o tempo parece não passar numa estreita cronologia, tudo existe para consulta permanente. Basta conjugar os algoritmos certos, acessar essa cloud tempestiva e lá estará essa recôndita memória que em algum momento ficara esquecida.
Tudo para ser lembrado oportunamente.
Democrático, claro está.
E aqui assenta esse princípio subjacente à evolução da Democracia contemporânea e o porquê de muitos apontarem o seu falhanço face aos múltiplos desafios que enfrenta.
Não há muitos anos a estabilidade existia dentro desse suposto ciclo eleitoral legislativo em que entre um Governo tomar posse e o outro se propor a exercer funções existia uma suposta estabilidade que, embora se visse envolver em casos de ordem política, não atingia este sintoma de agressão pessoal ao individuo como se assiste hoje.
E não é preciso falar necessariamente dos políticos, já que muitos até apreciam esta nova vertente viral de transparência em que tudo se pode saber e consultar, ainda que essa verdade muitas vezes seja ela mesma uma mentira ou rumor passado já desmentido mas que serve sempre para requentar ou aquecer uma polémica fervilhante.
O efeito analgésico é sintomático do nome que acabou por ser dado à polémica e que eu terminei por escolher para baptizar este (digamos) aperfeiçoamento da Democracia.
As pessoas – e isso sempre foi uma tradição – seguem o facilitismo do que se lhes apresenta. Lêem parangonas, títulos sumarentos, videos onde o contraditório não existe ou a insinuação é a forma de expor um suposto truque.
Depois escolhem em sintonia com isso.
Evidente que o efeito sistémico actual é muito pior, pois se a pomada anestesia por fora, retira a dor momentaneamente, o problema segue por dentro, corroendo um organismo que prefere o acessório ao essencial.
As caixas de comentários nas notícias são o berço cancerígeno de muito do que se vê repercutir depois, bastante inflamado, na Comunicação Social.
Os não assuntos transformam-se em assuntos, casos, causídicos, truculências afirmativas tal qual varicosas fatais. A noção básica de justiça transforma-se em justicialismo barato de sarjeta
Torna-se mais fácil partir a “tromba ao Cid” que escutar nas suas palavras um pernicioso humor negro a ignorar.
Torna-se mais fácil julgar os outros que a si mesmo.
Os políticos tornam-se extremistas em razão disso mesmo, achando-se impunes face ao seu anonimato aparente ou porque nunca antes governaram.
Como a política sempre se centrou nesse eixo central aliado, tão conspurcado de minudências ditas golpistas, a solução parece ser o desvio natural que a Democracia anestesiante nos traz.
Claro que no início até alivia a revolta, essa dor incutida pelo peso de umas pernas cansadas de calcorrear a vida do falhanço anterior, mas depois… Depois que resta afinal?
Restará a sintomática repercussão de uma amnésia inexistente que atacará quem agora se apossa do poder.
É a Democracia a funcionar. Sempre
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