O título/pergunta da crónica de hoje é muito simples e vai de encontro com uma questão muito pessoal minha: porque é que tenho a voz da minha Mãe?
Até aqui nada de muito relevante não fosse cumprir 33 anos em breve e ser, para todos os efeitos, um Homem.

Certo, a igualdade de género é uma das chancelas Democráticas de que muitos se orgulham e eu pessoalmente acho ridícula, sobretudo porque somos biologicamente diferentes, mas adiante porque o preconceito no género pode ser meu e estar aqui a destrinçá-lo pode ser uma forma de aproximação e não afastamento.

Voltando à premissa inicial, há uma contestação interna em mim a cada vez que oiço a pergunta enredo da crónica, como se a Sociedade fosse dicosinfónica e não existisse uma polisinfonia aceitável sem reprimenda do dito estereótipo.
É assistir televisão, ouvir rádio, escutar música. Eu fico estarrecido pela forma como a dialéctica verborreica que se faz apresentar em nada se parece com a forma como as pessoas falam no seu dia-a-dia.
Não só isso, mas a questão de género é sempre marcada pelo género feminino ser doce e dócil enquanto o masculino ser rude e agreste.
A Sociedade vê-se encenada dentro desse cânone fonético onde a variação é quase sempre – senão sempre – uma graça.

Dito isto, e indo à história de onde o preconceito se inicia, eu revejo-.me num ardil de preconceito auto induzido.

A história do som gravado começa ainda no século XIX quando o Fonoautógrafo de Édouard-Léon Scott de Martinville é apresentado em 1857. Dá-se início à Era Acústica, mas como o aparelho apenas gravava e não reproduzia, o desenvolvimento esbarrou na invenção do Fonógrafo.
Inventado em 1877 por Thomas Edison, a invenção permitia gravar e reproduzir som, embora o seu cilindro único fosse melhor para música do que a voz Humana. Mais ainda a concorrência que o Gramofone de Emil Berliner, em 1888, com um disco plano, lhe trouxe, acabou por aniquilá-lo do mercado. (dedicou-se às lâmpadas)

A segunda Era do som começa quando o som passa a Eléctrico.
Em 1925 surgem os sistemas integrados para gravação eléctrica de som da Western Electric. De repente o som da voz começa a poder ser gravado e reproduzido de uma forma sistemática e com menos falhas. Evidente que a expansão no entretenimento radiofónico e cinematográfico, assim como a busca da sonoridade artística são o principal coadjuvante da sua perpetuação e preconceito social até aos dias de hoje.

Em 1928 a Warner Brothers lança o primeiro talkie – ou na verdade o primeiro filme que combina musica com a pré-gravação de falas. Narra a história Jakie Rabinowitz um foragido de casa, em conflicto com o Pai, cantor litúrgico na Sinagoga local, e as suas tradições judaicas, rumo a uma vida de minstrel show e se tornar no Jazz Singer.
O retrato da Sociedade de então via-se expresso nesse rosto pintado a negro que Al Jolson usava quando se disfarçava de jogral, ao mesmo tempo que contribuía para um enaltecer de determinados estereótipos. Não só o visual mas o sonoro.

Só que o estereótipo do som, que a rádio já elucidava nas suas radio novelas pela distinção tonal das personagens, ganha um maior aliado quando a imagem que se vê não define a identidade de género visual inerente ao que se observa.

Aqui se divide a história do cinema falado e da televisão. Desse entretenimento fugaz que o espectáculo da sétima arte propicia, numa clara fuga à realidade, em espelho fantástico daquilo que não somos mas queremos ser, e da televisão, um escape de igualdade, dos sucessivos avanços tecnológicos que nos tornam mais próximos de quem connosco vive na caixa mágica.

No mesmo ano que Al Jolson canta o seu “My Mammy” a estação de rádio W2XB começa as primeiras emissões de televisão no mundo, directo das Instalações da General Electric em Nova Iorque. E para que o que os poucos telespectadores de então percebessem o que as 24 linhas verticais de resolução, os rostos dos apresentadores e actores que surgiam no ecrã eram também eles maquilhados por forma a pronunciar as suas características de género. Com isso as suas vozes eram também acentuadas para que se distinguisse quem era Homem e quem era Mulher.

Assim foi até 1944, ou pelo menos o estereotipo foi, permanecendo ainda que a qualidade de resolução fosse já de 525 linhas. Só que o vertical torna-se horizontal, e no resumir da Europa em Guerra, nesse quente esfriar de uma guerra que se iria tornar séria surge, vindo da União Soviética, a televisão electrónica com 625 linhas horizontais. É ela o princípio standart da resolução visual e sonora que nos acompanhou até surgirem novos modelos nos anos 1990.

É também este o mundo que de inventores nos torna figuras num plano de preconceitos sobre os papeis que desempenhamos e as vozes com que falamos. É-o até à libertação sexual do cansaço das guerras. Dos hippies yuppies. Dos beatos ateus. Dos hetero homossexuais.
Do racismo encapsulado na diferença que nos faz todos iguais.

No som da voz que é máscula e não feminina.

Evidente que não se pode querer tentar resumir de forma lata ou obliqua mais de cem anos de história de sonoridade e imagem e preconceito sonoro, mas o facto contundente é que o estereótipo existe e é tão presente como até hoje eu ser tratado por “Minha Senhora” sempre que atendo os telefonemas dos (irritantes) call centers.
Sei que não sou a externa visualização da máscula masculinidade de grossa voz e entoação de baixo operático, mas por vezes nem a barítono me sinto chegar.

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Sinto que a resposta à pergunta do título não existe somente dentro da minha exaustiva justificação.
Penso que a forma como nos expressamos no dia-a-dia, com a espontaneidade inerente de cada qual, tem mais a ver com a eloquência desse vibrato vocal. Porventura o meu não se assemelhe em nada ao estereótipo típico do que essa herança sonora nos deixou? Quem sabe no passado remoto quando o som não era gravado as vozes não fossem, de todo, como as que imaginamos serem as que hoje projectamos escutadas?
Ou mesmo, quem sabe, eu seja um Truman Capote encapotado!?

Seja como for, se me ligarem não me chamem “Minha Senhora”. Juro, não sou uma piada da criada malcriada… (ou talvez sim)

2 Comments

    1. Não doem nada. 🙂 apenas terminam por nós fazer, sempre, sentir categorizados.
      Felizmente, e como dizes, levo a vida nesse humor, categoria suprema para que o mais difícil nos pareça fácil. 😉
      O resto é sonoridade musical. E um bom falsete até pode ser falsário, porque castrati já não há!

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