Cronista at large é isto. Desaparece, para alívio de muitos, para, desapontantemente, reaparecer, cheio de vírgulas estranhas, advérbios de modo duvidosos, frases intercaladas que surgem como espinhos encravados entre o tarso e o metatarso, definindo conteúdos muito parecidos com o champanhe mais barato ou, a propósito da minha actual localização, com o prosecco de marca branca. Faz algum barulho quando se abre a garrafa mas as bolhinhas desaparecem em segundos.
Portanto aqui vai.
Estou em Veneza. Vim ver a Biennale.
No meio de assustadoras provocações estéticas, entre corpos mumificados por criogenia, mas com erecções bastante aceitáveis, e trouxas de roupa usada, a arte neo conceptual da Biennale saltita de absurdo em absurdo, tentando sempre ser mais que o absurdo, como se o absurdo não fosse suficientemente absurdo (obviamente ando a ler Gertrude Stein).
Como vivo em Portugal estou habituado aos reality shows sobre praticamente tudo. Dos filhos que o Ronaldo vai concebendo sem pecado nas suas fúrias masturbatórias às escutas de Sócrates.
Por isso, quando no pavilhão de Veneza no Giardino fui confrontado com um reality show em progresso envolvendo uma aula em mesa redonda, onde imigrantes ilegais vindos de África e da Ásia aprendiam corte costura com um fashion designer, a minha primeira reacção não foi de total estranheza.
Fiquei um bocado para ver um costureiro holandês tentar fazer com que os náufragos do Mediterrâneo entendessem a arte de bem costurar num pedaço de pano cru que iam retalhando em perfeito simulacro de normalidade.
Soube que os vinte e tal refugiados tinham sido enviados voluntariamente por uma organização que os acolhe e lhes dá apoio quando aportam a Lampeduza.
A organização voluntariou-os. Eles, foram mandados ir como voluntários para actuar nesta récita na Biennale. Foi-me dito que vinham de vários centros de acolhimento em Itália para serem mostrados na instalação oficial veneziana. Fiquei a olhar para eles e a pensar que há tipos nesta vida sem sorte nenhuma, mas só quando o suposto formador costureiro holandês disse a um dos seus pseudo formandos, alto e em bom som, que lhe ia dar o seu e-mail para o caso de ele querer prosseguir uma carreira na moda é que a náusea me atacou realmente, e me lembrei da grande exposição em Bruxelas no século XIX com o Rei Leopoldo da Bélgica a trazer famílias inteiras de uma remota tribo do Congo para a grande celebração do reino ultramarino inaugurada no museu colonial em Tervooren, em pleno Dezembro belga de 1897, com a tribo do Congo devidamente vestida com as suas peles tribais em tronco nu, acampada em cubatas de colmo nos relvados do Palácio onde ainda hoje se pode ver o Real Museu da Africa Central.
O registo histórico belga diz que morreram muitos de frio. Não sei se haverá fatalidades imediatas da lição de corte e costura da Biennale, mas sei que o desespero mata tanto como o frio de Bruxelas em Dezembro, se se estiver vestido com um tanga de pele de gazela de Thompson. Os refugiados da Biennale não tinham peles mas tinham o equivalente em ténis de marca, usados, e envergavam vários tipos de kispos, também gastos e ensebados, obviamente destroços da última season, dados em piedosa caridade por esquiadores beneméritos depois da estação da neve em Courchevel, mas que são equipamento tragicamente excessivo no calor do Outono que se está a sentir em Veneza.
Houve na audiência da aula de corte e costura quem se manifestasse contra a utilização demagógica de seres humanos nesta instalação conceptual que serve apenas para reafirmar que vivemos, na realidade do Mondo Cane.
É verdade.
Os cães foi quem safou o pavilhão da Alemanha da mediocridade. Dois assanhados doberman na trela curta de dois façanhudos guardas de uma empresa privada de segurança (eram parte da instalação mas pareciam muito motivados)… (ou seriam dois assanhados guardas de uma empresa privada de segurança segurando dois façanhudos doberman) não sei, mas o certo é que, como as pessoas gostam de ver cães e gatinhos no YouTube, o pavilhão da Germania (são eles próprios que se chamam assim trauteando Wagner) foi quem ganhou a Biennale deste ano.
Havia muito mais. De facto continua, agora mesmo, a haver muito mais, pois a Biennale vai até Novembro, distribuída pela cidade fora e centrada nas duas áreas dedicadas, o Giardino, que obviamente quer dizer Jardim, onde o tal reality show dos desalmados está a ter lugar oferecendo endereços de e-mail bem intencionados a refugiados sem computador, e o Arsenale, os históricos estaleiros de onde no século XVI saíram as galeras venezianas para derrotar o infiel turco na batalha de Lepanto e que hoje, nos seus colossais armazéns, acolhe a maior exposição colectiva da arte internacional do planeta.
Entra-se e está lá tudo. O bom, o mau, o feio e, sobretudo, o muitíssimo feio.
Na Biennale 2017 o feio consegue insuspeitados níveis de expressão numa entremeada de coisas putrefactas (algumas literalmente, por exemplo, o pavilhão de Israel impõe paredes onde crescem fungos) ou banalidades que nos fazem ranger os dentes e dizer – “mas que disparate”.
Depois vem uma espécie de tentativa de redenção estética no vanguardismo absoluto da tal criogenia de um pénis mumificado, tentando recordar em tons de cinzento e negro saudosas erecções e no processo condenando quem o vê a umas noites (e dias) de impotência pós traumática. Claro que é tudo feito em fibras de vidro, mas eu ainda assim senti um cheiro muito esquisito. Provavelmente ainda era sugestão dos fungos do pavilhão israelita.
Mas limitar a Biennale ao Giardino e ao Arsenale é perder a grande festa da vida deste colossal salão, na mais natural das galerias do planeta que é a sereníssima jóia do Adriático.
Veneza provoca, tenta, repele, insulta, atrai, alicia, bajula, horroriza, encanta, enoja mas nunca, mesmo nunca, comete o único pecado realmente mortal da existência – ser monótona.
Isso a Biennale nunca foi e seguramente nunca será.
Por isso é preciso investir tempo em buscas dos pavilhões nacionais que são umas dezenas, dispersos por um dédalo de ruelas tão estreitas que o GPS deixa de funcionar e onde o estado natural é andar-se completamente perdido. Vai-se assim de palácio em palácio à descoberta de descodificações do presente e em busca das sombras do futuro que só os artistas nas suas obras nos conseguem ocasionalmente deixar vislumbrar (belíssima imagem esta que usei, notável mesmo, mas não é minha. É Marshal McLhuan).
Com bagagem como esta atravessa-se a Laguna e chega-se a um desses palácios renascentistas onde o português Pedro Croft trouxe à zona da Giudecca a sua Medida Incerta.
Uma provocação aos sentidos em espelhos colossais que transportam em reflexos de cor os ambientes que nos rodeiam, multiplicando as ondas dos canais, desdobrando nuvens e ocasionalmente deixando entrever figuras que parecem inquietantes até nos apercebermos que é a nossa própria imagem nua e crua, vista em reflexos de cor que são estranhos, porque nos despem.
Despem e descolonizam-nos das culturas heróicas que nos incutiram ao ponto de nelas querermos acreditar. São reflexos (e reflexões) que nos retiram os preconceitos das excepcionalidades que não temos.
Depois, o facto da instalação ter sido colocada na que é uma das áreas mais recatadas de Veneza, faz com que a meditação sobre o que nos é mostrado se liberte também da inevitável sensação de sufoco que acaba por vir, ao fim de algum tempo a deambular pelas dimensões medievais da apertada malha urbana.
Aqui, na Medida Incerta de Croft chegamos a um dos poucos sítios de Veneza onde o desafogo das vistas amplas, quase até ao oceano, nos devolve uma tão necessária linha do horizonte como referência. Também isto foi para mim uma leitura dos reflexos das medidas incertas. José Pedro Croft faz acompanhar a sua obra plástica de um vídeo onde os efeitos do reflexo das realidades mais perturbantes nos deixam inquietos, seja pela cicatriz na paisagem de uma pedreira abandonada seja pela inadequação de muito do que nos rodeia, e de que só nos apercebemos quando nos vemos reflectidos sem disfarces.
Depois há Inquietações na Medida Incerta que desequilibram muito as estabilidades que damos como adquiridas. As colossais estruturas que Croft imagina para suportar os seus reflectores gigantes são quase antropomórficas. As molduras apoiam-se em vigas de aço imensas e inflexíveis que apesar de rígidas sugerem movimento, advertindo pelo seu gigantismo e descompasso que as realidades reflectidas estão a avançar rumo a futuros que nos devem preocupar.
Mas não era nada disto que eu queria para mim nestes escritos at large. Refletido e apanhado nos meus próprios infinitos, apareço eu aqui incapaz de me reinventar quando tenho oportunidade para isso.
Mas não. De facto acabei a fazer aquilo que sempre fiz. Tentar descrever realidades.
Quando aceitei o convite para arrumar umas palavras neste blog imaginei-me a dar largas à minha loucura que hastearia a arder como um facho credo!!!! (lagarto, lagarto, lagarto) na noite escura e a sentir espuma e sangue e cânticos nos lábios (bom outra vez, também não é meu. É Régio).
Mas como fui jornalista 45 anos há-de haver sempre uma parte de mim que escorrega para o sicofantismo com uma incorrigível tentação de agradar a muitos e muitas.
Por isso tenho estado a escrever nos limitezinhos medíocres da descrição factual. Eu devia era estar em busca (ou mesmo estar buscando, se fosse brasileiro) de originalidades. Qual artista da Biennale. Imune a críticas. Devia ser como Damien Hirst cuja imaginação desbragada colonizou o Palácio Grazzi e a Dugana de Mare com os salvados de um naufrágio imaginário de uma imensa trirreme fictícia, o Inacreditável, que com os porões cheios de despojos de um reino que não existiu, algures onde os orientes todos se cruzam com alguns ocidentes (ou serão os ocidentes todos que se cruzam com alguns orientes), os deixou em fundos de coral de um mar tropical junto do Ártico (ou teria sido no Antártico).
O importante são os salvados em jade e ouro e gemas que resplandecem em jóias de alumínio, com estatuas de demónios e deusas em fibra de vidro, onde sobressai a terrível cena que urra muito alto em sete metros de mármore níveo de Carrara de uma serpente que estrangula de uma vez só cavalo e cavaleiro, e ficou gelada na pedra esculpida quando está prestes a devorar a cabeça do infeliz.
É um dos mais significativos salvados do naufrágio do Inacreditável. Tem como título “O que acontece a um homem banido”. O outro objecto, recuperado do fundo do oceano tropical, de grande significado arqueológico é uma estátua em tamanho natural cheia de incrustações de ostras, corais, lapas, mexilhões, búzios, amêijoas, estrelas do mar, ouriços, carapaças de paguros e exoesqueletos do terebratulas, onde se reconhecem claramente Walt Disney com o seu fiel Rato Mickey pela mão.
Mesmo ao lado, na mesma margem do Grande Canal o escultor Lorenzo Quinn, filho do imortal Anthony Quinn que aqui viveu, fez erguer duas imensas mãos de criança suplicantes que saem da água entre gôndolas, vaporettos e lanchas Riva, para se apoiar na parede de um palácio barroco tentando deter o avanço do aquecimento global. Como é que eu posso ter a veleidade de tentar descrever a realidade quando é a realidade que me tem estado a descrever desde que aqui cheguei?