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Olha-se para o mundo. E Londres está em alerta máximo, aqui tão perto. E a zona sísmica portuguesa começa a dar sinal de si, e aqui mesmo por baixo. Lêem-se notícias. E um conflito nuclear é possível, a generalizar-se, a guerra que terminará com todas as guerras. E um atentado pode suceder, humano ou provindo da Natureza. Um só homem lança pânico sobre cidades que são fortins. Sob cada um dos nossos passos há já um olhar que nos espia, um rasto indelével que nos mancha a ilusão dos outros quanto a nós, descobertos os recônditos.

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De Buenos Aires a Nueva York | by Tuky&Co | 2015
Na rua, anichada num banco uma jovem toca uma solitária concertina, rodopiante som, a rua pejada de turistas, encadeados pelo Sol.
Moído pelos meus deveres, recluso, entreabro taipais, para que mal entre a luz. A penumbra tranquiliza. Fica o som e o silêncio, amigavelmente osmóticos. Reduzo ao mínimo os cinco sentidos para que esta hipoteca do cérebro a tão pouco e tão cansativo não doa tanto. E trabalho, rotineiro, remador da galé das obrigações.
Olho-os, livros que comprei antes que desaparecesse a possibilidade de os poder ler, seres alados que gaivotam, efémeros, pelas livrarias. E afinal não li e cada vez mais me parece mais longínquo que consiga lê-los. E temo por eles, como prole que entregarei à sua sorte no dia em que, sem mim, se abaterem as estantes. Olho, sem que eles me recriminem, os não lidos ou folheados sequer. E os livros que escrevi, aquém sempre do que gostaria, aquém também do que poderia. E os livros que editei e quase ninguém leu e se acumulam, mercadorias para a distribuidora, em que desbaratei quanto me foi possível de um dinheiro que não queria. E só nos faz falta o que queremos.

Na praça, dois camiões da distribuidora, que o acaso fez estacionar ali, lembram-me a sua existência, tal como de manhã tão cedo, ensacá-los e carregar com eles, me pesou, na consciência e nos braços, a sua inútil presença.

Mais uma distribuidora em insolvência, mais editores arrastados pelo torvelinho falimentar. A partir daqui é a sem esperança ante o que se fez. Tudo se torna “mono”, crédito irrecuperável, stock a abater.
Desde que perdeu a frescura de uma ilusão, cada livro é um folio de papel a amarelecer, árvores decepadas para coisa nenhuma. A reclamar armazém. Há quem os guilhotine, sem coração que chore. Ou os ofereça aos autores, donos do que neles se contém.
Na estante, nesta estante desta cidade onde estou, juntei livros sobre editores. Os que me foi possível encontrar. Histórias de mecenas a quem foi possível sê-lo, relatos de desilusão e de calote. Bebedeira da mente, publicar livros. Paixão do espírito, terapia da tristeza, troca-se a melancolia pelo desespero.
Poderia ir, estão mesmo em frente, trazê-los e citá-los. Dar-lhe-ia pela menção um sopro de vida. Fernando Guedes e Fernando Ribeiro de Melo, Luís de Montalvor e Delfim Guimarães, Agostinho Fernandes e Luiz Pacheco, Serafim Ferreira, tantos, tantos, esqueço tantos, mesmo os fundamentais. Mas não é disso que falo. Neste dia de Sol, recuso a ordem, as listas que se pretendam exaustivas.

Tudo é acaso e circunstância. Um dia ardeu a Biblioteca de Alexandria. Cada minuto morrem homens que são bibliotecas vivas de saber e de sentimentos.
Tenho pelo Jorge Luis Borges a obsessão neurótica do seu mundo helicoidal, território de sem fim, mundo sem retorno para cada um dos entes que o povoam, a cegueira.

Tudo é atributo de uma essência. Penso que é assim que Spinoza concebeu o seu modo de ser. E Clarice Lispector o colocou nos seus enigmáticos livros, país de maravilhas.

Continuarei. Tentarei ler, mais logo, uma página que seja, apenas pela liberdade de o fazer.
Chegou esta madrugada a capa do próximo livro. Estamos a rever provas. Alagado de deveres, anseio pelo Sol, como quem deseja a vida. Esta noite, desperto por um qualquer sinal, uma borboleta esvoaçava no quarto. Estranho sinal.

2 Comments

  1. Brilhante Como quem entende e sabe usar as palavras, nos mostra a dureza do já.
    Como a escrita certa faz a volta ao mundo em escassos minutos ,num estranho sinal do agora !

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    1. Obrigado Elisa.
      Manter a farpa unidimensional era um agravo para mim também. Dito isto lancei o desafio é o José António aceitou. Assumo, tem sido um enorme desafio, mas prazer ser seu editor, mas claro, eterno discípulo.
      O seu comentário já foi entregue, aguardemos a resposta na volta do correio.

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