“Um disse que foi por causa de uma dívida de cinco maços de cigarros. Outro cara aí que disse que foi por causa de discussão de futebol, mano. Uns carinha que estava perto falo até que foi por causa de uma cueca. Aí você vê mano. Na cadeia ninguém conhece a moradia da verdade.”

Projectar uma cadeia, presidio, casa de detenção, é uma das maiores dificuldades que um Arquitecto pode ter na sua carreira. Esse facto advém do decalque sociológico com que a vida ali transposta tem nessa acepção totalitária que um qualquer Governo – seja qual índole ideológica tenha – transpõe como modelo de perfeição regulamentar.
Na Sociedade Ocidental o modelo vigente pelo qual se concebe a maioria das cadeias deriva do princípio clássico da divisão unitária por celas, distribuídas por unidades independentes interligadas por pátios de contacto para momentos ao ar livre.
Na distribuição do individuo à chegada, todos são iguais, sendo depois separados consoante o nível de imposição que o modelo impuser e/ou a Sociedade confinada determinar.

A segregação começa logo pela igualdade entre essa diferença separatista.

A penalização da novidade é equiparável à de quem, por mau comportamento, desafia a autoridade prisional com livre arbítrio. Já os delatores são compensados com a regalia do bom comportamento que os torna melhores. O bem comum é a salvaguarda do individuo revista nas necessidades que serve como salvação. O dinheiro existe na medida do que o regime determina, a sua troca do que o trabalho e a sua fuga permite. Tudo é regra, tudo é lei. Tudo é a sua corrupção.

Numa acepção tão conhecida dos dias que passam:
“é uma sociedade onde cada um contribui para o bem comum de acordo com as suas capacidades, e cada um recebe de acordo com as suas necessidades”

Fundamentalmente, a vida num presidio é a Sociedade prefeita que Marx (e outros) tanto ambicionaram.

Carandiru.jpg

Mas é justo aqui que entra o olho vigente da Lei.
Ou quem sabe, melhor dito, do Governo que rege a autoridade fiscalizadora do presidio.

Esse facto tornou-se explicito quando a 2 de Outubro de 1992 uma rebelião de detentos iniciou uma discussão. A sua razão permanece desconhecida. Se foi por causa de cigarros, futebol ou cuecas ninguém sabe, a verdade é que uma disputa interna no Pavilhão 9 – réus primários, impetuosos e ainda sem a assimilação completa das regras a serem seguidas – gerou a investida da Polícia Militar contra presos previamente desarmados.
O resultado foi a chacina de 111 Seres Humanos culpados de serem prisioneiros.

Mas a Sociedade desse bem comum e necessidades, existente fora da Casa de Detenção, olharia, quem sabe, com o desdem necessário face à carnificina ali praticada. Não, há determinados valores que são inerentes à educação de cada qual.
“Foi esta sociedade que eu aprendi na minha casa a acreditar”

Assim, não só as condenações primárias dos 64 Polícias Militares – 156 anos de prisão cada um pelo seu envolvimento na morte de 12 presos durante o massacre – como a do seu responsável, Coronel Ubiratan Guimarãescondenado a 632 anos de prisão por 102 das 111 mortes do massacre – foram anuladas e absolvida, como 22 anos depois a memória do Massacre do Carandiru é ainda uma ferida aberta e exposta na Sociedade Brasileira.

Da mesma forma que a cadeia ideal não existe, a Sociedade prefeita muito menos.
O que o massacre de 1992 demonstra é que a imposição da regra sobre a lógica, onde a justiça se quer fazer razão de igualdade, são o prefeito rumo para a rebelião onde vence o mais forte.
Naquele momento venceram as balas contra cidadão desarmados.
Agora vence a máquina do Estado contra cidadãos remediados nas suas poupanças.
Mas o dia chegará em que, olhando para os político, neles, ninguém reconhece a moradia da verdade.

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